quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A PALAVRA E O SILÊNCIO em CLARICE LISPECTOR - Mahler: Symphony No. 2 (Resurrection)


 

 



A PALAVRA E O SILÊNCIO: O ESOTERISMO DE CLARICE LISPECTOR




Assim acontece com a minha palavra que sai de minha boca: ela não volta para mim sem efeito, sem ter cumprido a missão para qual eu a mandei.
Isaías, 55:11

Sou uma iniciada sem seita.
Clarice Lispector, Água Viva

 



A maior ou menor capacidade de nomear o mundo define a maior ou menor perplexidade e terror em relação ao mesmo. No momento em que as coisas são nomeadas, rotuladas, deixam de ser assustadoras e passam a fazer parte do conhecido, do familiar. O processo de apreensão do mundo pela palavra, contudo, tende a revestir a realidade com uma opacidade embrutecedora que anestesia a nossa percepção e nos induz a ver como óbvio, banal, algo que em sua essência é mágico e misterioso. Dentro desse universo, onde a palavra deixou de habitar o mais íntimo da alma humana e perdeu, para usar uma expressão de Guimarães Rosa, a sua condição de “porta para o infinito” , a literatura constitui um elemento de transcendência, um meio de quebrar os condicionamentos limitadores do cotidiano e (re)instaurar o sentido “místico” das coisas. A palavra literária, então, é aquela que está mais próxima da palavra primordial, do primeiro dia da criação, pois está plena da humildade e do cuidado daquilo que se aproxima do mundo para melhor entendê-lo; não para neutralizá-lo. Estabelece-se, assim, uma oposição entre a palavra que está por tocar algo que não “entende”, e a palavra que já rotulou, “entendeu”, e remete o “entendido” para o prosaico e o esquecimento.

Através dessa concepção algo metafísica da palavra é possível ver conexões entre a literatura e a tradição esotérica, uma vez que, como lembra Pierre Riffard, a maior parte das cosmogonias ocultas são descritas em termos lingüísticos, seja atribuindo a Criação a um Verbo criador, a um som primevo ou a uma língua primordial, seja expressando-se através de uma linguagem ou escrita consideradas divinas . Não existe nenhum esoterismo que não atribua um valor simbólico à palavra, que não busque a divinização através do nome e de uma etimologia oculta. O processo iniciático, que se efetua pela quebra do silêncio, através da atribuição de um nome místico ao neófito, encerra-se sempre com a menção do Nome de Deus, com a recitação dos mitos e com a entoação dos sons místicos, isto é, fazendo da palavra a ligação com o Cosmos.

Essa concepção esotérica da palavra encontra sua ramificação mais paradigmática na doutrina religiosa, mística e ocultista denominada “Doutrina do Nome”, segundo a qual o nome é a própria coisa e atribuir um nome equivale a conhecer, compreender, dominar. Pragmática, a “Doutrina do Nome”, através do princípio da simetria, pressupõe uma “Prática do Nome”, a qual se desdobra em planos adivinhatórios (onde a natureza de algo é passível de ser revelada a partir do valor das letras da palavra que o designa); hermenêuticos (a arte combinatória de letras e números, por exemplo); iniciáticos (onde é dado ao buscador os meios de conhecer de cor os textos sagrados e os rituais tradicionais); e mesmo artísticos, onde a “Prática do Nome” é feita através da caligrafia, do desenho na areia, da eufonia e, uma vez mais, da literatura. Mas não qualquer literatura; somente aquela que busca devolver à palavra o seu sentido original, seu caráter iniciático e propiciatório, o qual induz o leitor a um estranhamento com o mundo, com o que está (aparentemente) decodificado, e, assim fazendo, restabelece o mistério das coisas e instaura o espanto do ser que se vê “sendo”.

Clarice Lispector parece ter essa concepção da literatura (e do mundo, uma vez que para ela ambos estão intimamente ligados) e fazendo da palavra um meio de apreensão e revelação do mundo, repete o processo da Criação: Clarice brinca de ser Deus. Dentro dessa linha de pensamento, é possível estabelecer pontos de contato entre a atitude de Clarice diante da linguagem e aquela dos místicos cabalistas, os quais concebem a linguagem como o instrumento de Deus . Assim como Deus, para os cabalistas, não é uma entidade perfeita e precisa constantemente da ação de suas criaturas para a sua afirmação, bem como para a manutenção e aperfeiçoamento de sua obra, os personagens clariceanos parecem intuir uma imperfeição, um desequilíbrio no mundo e em sua fúria rotuladora buscam (re)instaurar a harmonia. No entanto, se a palavra é apaziguante (na medida em que dá um estofo concreto ao mundo), o equilíbrio que ela proporciona é precário e provisório, e a consciência dessa precariedade constitui o elemento deflagrador da escrita de Clarice; escrita essa que tangencia sempre o limiar do indizível, da não palavra, e que revela sempre a inquietude do sujeito que infere que a realidade não é verbal e que o mundo contém algo que as palavras não conseguem enunciar.



A percepção do caráter indizível do mundo e do fracasso da linguagem traz para o texto de Clarice uma certa atmosfera angustiante, que não conta nem ao menos com o artifício tranquilizador da ironia, uma vez que esta pressupõe uma compreensão prévia de uma determinada situação, compreensão que parece ausente em Clarice, na medida em que o predominante em seu texto é justamente o sentimento de perplexidade perante as coisas. É como se ela estivesse permanentemente (re)descobrindo o mundo, daí o estranhamento com as pessoas, com as coisas do mundo, com os objetos do cotidiano.



Essa perplexidade com as coisas, que é quase um não saber prosseguir (uma vez que imobiliza o sujeito), reveste-se de um tom metafísico ao longo de toda a obra clariceana, e mesmo em seus textos mais “tradicionais”, onde a estrutura dos gêneros não parece tão ameaçada, Clarice aborda o mundo por um viés “torto”, esquivo, fazendo com que o que é conhecido, óbvio, adquira um tom inaugural insuspeitado. No entanto, é justamente nesse processo de nomeação quase abstrato, onde a linguagem chega a “se falar”, que a palavra entra em crise e, por assim dizer, fracassa, pois para o fim que Clarice se propõe as palavras, banalizadas pelo uso comum, já se mostram gastas a priori. É necessário, então, inventar um novo léxico, o qual, paradoxalmente, só se torna possível através do seu avesso, da não palavra, do silêncio.


Por esses dois caminhos contraditórios viaja Clarice. Mas, se são contraditórios, não são excludentes, e por vezes quase chegam a se tocar, quanto mais não seja, pela afinidade que ambos apresentam com o pensamento místico, pois se, por um lado, a via da nomeação, o texto clariceano se aproxima da “Doutrina do Nome”, da cabala (mas também da física quântica (4)), por outro, pela via do “esvaziamento” da linguagem, pela busca da apreensão do instante-já, ele se avizinha de algumas doutrinas orientais como o Budismo e o Taoísmo, por exemplo, nos quais, como bem lembra George Steiner, “(...) imagina-se que a alma ascende dos grosseiros obstáculos da matéria, através de domínios de percepção que podem ser transmitidos por linguagem sublime e exata, rumo a um silêncio cada vez mais profundo .”


O silêncio, em Clarice, tem tanto valor quanto a palavra e constitui, de certo modo, o fim último e utópico de sua escrita, no entanto, ela sabe que se o silêncio é a expressão máxima do indizível, é somente através da palavra que se chega a essa conclusão:


..........Eu tenho à medida que designo - e este é o 
esplendorde se ter uma linguagem.Mas eu tenho muito mais à
medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima,
a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho.
Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, 
e que instantaneamente reconheço. 
A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho 
que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas 
volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado 
através do fracasso da minha linguagem.

......Só quando falha a construção, é que obtenho o que 
ela não conseguiu .


Ao contrário do Budismo, contudo (e isso não contradiz o que eu disse antes), a matéria, posta em foco pela palavra, não está reduzida, no mundo clariceano, a um “grosseiro obstáculo”. Ao contrário, ela tem tanta carga de mistério quanto o “espírito”, e talvez seja mesmo mais fantástica, na medida em que se constitui no mistério evidente e palpável, enquanto que o espírito reside no reino do inefável, do abstrato. A consciência disso faz com que o texto de Clarice interaja com as coisas, com os objetos, e deles faça parte. Por essa razão, parece-me equivocada uma análise como a de Luis Costa Lima, que vê na obra de Clarice uma desarticulação com a totalidade concreta . O que ocorre é justamente o contrário: Clarice adere ao concreto, devolvendo às coisas toda a sua carga de materialidade imperativa e onipresente e, nesse sentido, a fala da personagem Ângela, em Um Sopro de Vida, revela-se como uma síntese da percepção que Clarice tem do mundo:

...Não posso ficar olhando demais um objeto
   senão ele me deflagra.

...Mais misteriosa do que a alma é a matéria.
Mais enigmática que o pensamento, é a “coisa”.

A coisa que está às mãos
milagrosamente concreta.



Como se vê, em Clarice Lispector o próprio ato de observação do objeto é uma experiência mística, na medida em que é a partir do objeto que se constrói a consciência dos personagens: o observador se observa através do objeto observado e assim atinge a iluminação. Obviamente, essa experiência, que não é vivida pela maioria das pessoas, necessita de uma mediação para que seja compreendida pelo leitor; mediação essa que se dá pela palavra transformada, isto é, pela palavra despida das limitações impostas pelos seus significados convencionados. De Clarice, então, se pode dizer o que George Steiner diz de Mallarmé: “(...) faz das palavras atos, não fundamentalmente de comunicação, mas de iniciação a um mistério particular, (...) usa palavras correntes em sentidos ocultos e enigmáticos; nós as reconhecemos, mas elas nos dão as costas .


Emblemático desse processo de apagamento dos sentidos atribuídos às palavras (e também do processo de fusão com o objeto), o conto-ensaio O ovo e a galinha  se constrói a partir do jogo de linguagem estabelecido entre o objeto “ovo” e a palavra “ovo” que o nomeia, numa aproximação lúdica e simultânea da linguagem infantil se esboçando, e da mais abstrata especulação filosófico-metafísica, na qual se busca incessantemente, através da reiteração do nome, definir o objeto, sem que, no entanto, se chegue a atingir essa meta, já que quanto mais se acumulam as definições, mais se distancia a essência do objeto.

Paralelamente a essa fúria aproximativa do objeto , contudo, há a preocupação do narrador em não entendê-lo, pois se o entender estará errando. A linguagem do conto, então, não se propõe a elucidar o mistério do ovo; quer apenas mostrar que é mistério, e o que se delineava como um processo de apreensão do objeto, no início do texto, no final revela-se como o desapego supremo, “pois o ovo é um esquivo”, e somente quando deixado livre, “impensado”, é que pode se revelar em sua verdadeira essência.

O círculo que leva da palavra ao silêncio, e deste novamente para a palavra, encontra nesse conto um ponto de equilíbrio, como se ambos, palavra e silêncio, cada um em um “momento” da circunferência, em um dado momento “escorregassem” para um mesmo ponto do círculo, finalmente se encontrando. Nesse sentido, esboça-se, aqui, um processo de aproximação da música, através do artifício do contraponto, o qual atingirá o paroxismo em Água Viva, onde se evidenciam, explicitamente, aqueles traços típicos da escrita de Clarice que já estavam presentes em toda a sua obra anterior mas que aqui aparecem despidos de toda amarra de gênero ou paradigma que limite o sentido: a recusa da narrativa e a busca do silêncio, o qual, se mais do que inapreensível, é incomunicável, ao menos é passível de ser “tocado” através da aproximação daquilo com que mais se parece: a matéria viva, representada em suas formas mais reduzidas e absolutas, como a medusa, a água-viva. O orgânico-primordial, então, confunde-se com o Absoluto, com o espiritual, e sob esse prisma, o elemento “água”, presente ao longo do texto, longe de se constituir unicamente num sentido químico, agrega a si o sentido a ele atribuído pelos antigos alquimistas: água como “um princípio de fluidez, fertilidade; umidade ao mesmo tempo mórbida e geradora” , elemento, enfim, mais sutil que a matéria e a linguagem, pois pode elevar-se como vapor e depositar-se como orvalho; água como elo entre o transcendente, o silêncio; e o concreto, a palavra.

Essa fluidez de água, da qual o texto busca se aproximar, é também a fluidez polifônica de uma peça musical, pois em Água Viva os temas nascem e se repetem num jogo de variações e fuga análogo ao da música. Assim como a música nada mais é do que uma moldura para o silêncio, uma maneira de tornar perceptível a ausência do som, o texto de Água Viva é um longo adágio, um andamento lento e contínuo para além das fronteiras da palavra:

...Que música belíssima ouço no profundo de mim.
É feita de traços geométricos se entrecruzando no ar. 
É música de câmara. Música de câmara é sem melodia.
É modo de expressar o silêncio. 




Sob o aspecto da palavra como um meio de expressão do silêncio, Água Viva talvez seja o texto mais perfeito de Clarice Lispector, pois ao mesmo tempo em que constitui o auge do paradoxo que funda sua escrita (só através da palavra é que o silêncio pode ser dito), também é o momento de resolução do paradoxo, através da abdicação do desejo de relatar o mundo. O mundo, então, com tudo o que ele contém, passa a ser, simplesmente, sem explicações:


.............É-se. Sou-me. Tu te és. (14)


Oposto à idéia de narrativa, de história por contar, esse minimalismo conceitual põe a nu toda o estranhamento e a singularidade do texto de Clarice Lispector, o qual extrapola a condição do meramente literário para atingir o status de metafísica, cosmogonia oculta. Nesse sentido, criando uma obra que postula seus próprios conceitos e inventa seus próprios paradigmas, Clarice Lispector se coloca, conscientemente, à margem de toda e qualquer tradição literária (15), e se inscreve na estirpe dos antigos alquimistas, que viam na matéria o pretexto para atingir o infinito.







JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES 

 

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