A PALAVRA E O SILÊNCIO: O ESOTERISMO DE CLARICE LISPECTOR
| Assim acontece com a minha palavra que sai de minha boca: ela não volta para mim sem efeito, sem ter cumprido a missão para qual eu a mandei.
Isaías, 55:11
Sou uma iniciada sem seita.
Clarice Lispector, Água Viva
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A maior ou menor capacidade de nomear o mundo define a maior ou menor perplexidade e terror em relação ao mesmo. No momento em que as coisas são nomeadas, rotuladas, deixam de ser assustadoras e passam a fazer parte do conhecido, do familiar. O processo de apreensão do mundo pela palavra, contudo, tende a revestir a realidade com uma opacidade embrutecedora que anestesia a nossa percepção e nos induz a ver como óbvio, banal, algo que em sua essência é mágico e misterioso. Dentro desse universo, onde a palavra deixou de habitar o mais íntimo da alma humana e perdeu, para usar uma expressão de Guimarães Rosa, a sua condição de “porta para o infinito” , a literatura constitui um elemento de transcendência, um meio de quebrar os condicionamentos limitadores do cotidiano e (re)instaurar o sentido “místico” das coisas. A palavra literária, então, é aquela que está mais próxima da palavra primordial, do primeiro dia da criação, pois está plena da humildade e do cuidado daquilo que se aproxima do mundo para melhor entendê-lo; não para neutralizá-lo. Estabelece-se, assim, uma oposição entre a palavra que está por tocar algo que não “entende”, e a palavra que já rotulou, “entendeu”, e remete o “entendido” para o prosaico e o esquecimento.
Através dessa concepção algo metafísica da palavra é possível ver conexões entre a literatura e a tradição esotérica, uma vez que, como lembra Pierre Riffard, a maior parte das cosmogonias ocultas são descritas em termos lingüísticos, seja atribuindo a Criação a um Verbo criador, a um som primevo ou a uma língua primordial, seja expressando-se através de uma linguagem ou escrita consideradas divinas . Não existe nenhum esoterismo que não atribua um valor simbólico à palavra, que não busque a divinização através do nome e de uma etimologia oculta. O processo iniciático, que se efetua pela quebra do silêncio, através da atribuição de um nome místico ao neófito, encerra-se sempre com a menção do Nome de Deus, com a recitação dos mitos e com a entoação dos sons místicos, isto é, fazendo da palavra a ligação com o Cosmos.
Essa concepção esotérica da palavra encontra sua ramificação mais paradigmática na doutrina religiosa, mística e ocultista denominada “Doutrina do Nome”, segundo a qual o nome é a própria coisa e atribuir um nome equivale a conhecer, compreender, dominar. Pragmática, a “Doutrina do Nome”, através do princípio da simetria, pressupõe uma “Prática do Nome”, a qual se desdobra em planos adivinhatórios (onde a natureza de algo é passível de ser revelada a partir do valor das letras da palavra que o designa); hermenêuticos (a arte combinatória de letras e números, por exemplo); iniciáticos (onde é dado ao buscador os meios de conhecer de cor os textos sagrados e os rituais tradicionais); e mesmo artísticos, onde a “Prática do Nome” é feita através da caligrafia, do desenho na areia, da eufonia e, uma vez mais, da literatura. Mas não qualquer literatura; somente aquela que busca devolver à palavra o seu sentido original, seu caráter iniciático e propiciatório, o qual induz o leitor a um estranhamento com o mundo, com o que está (aparentemente) decodificado, e, assim fazendo, restabelece o mistério das coisas e instaura o espanto do ser que se vê “sendo”.
Clarice Lispector parece ter essa concepção da literatura (e do mundo, uma vez que para ela ambos estão intimamente ligados) e fazendo da palavra um meio de apreensão e revelação do mundo, repete o processo da Criação: Clarice brinca de ser Deus. Dentro dessa linha de pensamento, é possível estabelecer pontos de contato entre a atitude de Clarice diante da linguagem e aquela dos místicos cabalistas, os quais concebem a linguagem como o instrumento de Deus . Assim como Deus, para os cabalistas, não é uma entidade perfeita e precisa constantemente da ação de suas criaturas para a sua afirmação, bem como para a manutenção e aperfeiçoamento de sua obra, os personagens clariceanos parecem intuir uma imperfeição, um desequilíbrio no mundo e em sua fúria rotuladora buscam (re)instaurar a harmonia. No entanto, se a palavra é apaziguante (na medida em que dá um estofo concreto ao mundo), o equilíbrio que ela proporciona é precário e provisório, e a consciência dessa precariedade constitui o elemento deflagrador da escrita de Clarice; escrita essa que tangencia sempre o limiar do indizível, da não palavra, e que revela sempre a inquietude do sujeito que infere que a realidade não é verbal e que o mundo contém algo que as palavras não conseguem enunciar.
A percepção do caráter indizível do mundo e do fracasso da linguagem traz para o texto de Clarice uma certa atmosfera angustiante, que não conta nem ao menos com o artifício tranquilizador da ironia, uma vez que esta pressupõe uma compreensão prévia de uma determinada situação, compreensão que parece ausente em Clarice, na medida em que o predominante em seu texto é justamente o sentimento de perplexidade perante as coisas. É como se ela estivesse permanentemente (re)descobrindo o mundo, daí o estranhamento com as pessoas, com as coisas do mundo, com os objetos do cotidiano.
Essa perplexidade com as coisas, que é quase um não saber prosseguir (uma vez que imobiliza o sujeito), reveste-se de um tom metafísico ao longo de toda a obra clariceana, e mesmo em seus textos mais “tradicionais”, onde a estrutura dos gêneros não parece tão ameaçada, Clarice aborda o mundo por um viés “torto”, esquivo, fazendo com que o que é conhecido, óbvio, adquira um tom inaugural insuspeitado. No entanto, é justamente nesse processo de nomeação quase abstrato, onde a linguagem chega a “se falar”, que a palavra entra em crise e, por assim dizer, fracassa, pois para o fim que Clarice se propõe as palavras, banalizadas pelo uso comum, já se mostram gastas a priori. É necessário, então, inventar um novo léxico, o qual, paradoxalmente, só se torna possível através do seu avesso, da não palavra, do silêncio.
Por esses dois caminhos contraditórios viaja Clarice. Mas, se são contraditórios, não são excludentes, e por vezes quase chegam a se tocar, quanto mais não seja, pela afinidade que ambos apresentam com o pensamento místico, pois se, por um lado, a via da nomeação, o texto clariceano se aproxima da “Doutrina do Nome”, da cabala (mas também da física quântica (4)), por outro, pela via do “esvaziamento” da linguagem, pela busca da apreensão do instante-já, ele se avizinha de algumas doutrinas orientais como o Budismo e o Taoísmo, por exemplo, nos quais, como bem lembra George Steiner, “(...) imagina-se que a alma ascende dos grosseiros obstáculos da matéria, através de domínios de percepção que podem ser transmitidos por linguagem sublime e exata, rumo a um silêncio cada vez mais profundo .”
O silêncio, em Clarice, tem tanto valor quanto a palavra e constitui, de certo modo, o fim último e utópico de sua escrita, no entanto, ela sabe que se o silêncio é a expressão máxima do indizível, é somente através da palavra que se chega a essa conclusão: