quarta-feira, 15 de maio de 2013

ASTRONOMIA, ASTROLOGIA E MITOLOGIA - Nuno Crato






 Gravura extraida de Atlas Coelestis seu Harmonica Macrocosmica,
 de Andreas Cellarius, Amesterdão, 1661

Astronomia, Astrologia e Mitologia




Há cinco mil ou seis mil anos, quando os homens começaram a registar o movimento dos astros, o firmamento estava ainda povoado por deuses e demónios. Os céus eram responsáveis pela miséria e pela prosperidade, pelo dilúvio e pela calmaria, pelo desvario da luta e pela sorte na caça.


Os primeiros astrónomos viviam num mundo de deuses, de monstros e de heróis. As suas observações conseguiram um notável rigor, mas estavam marcadas pelas suas crenças. Alguns dos conceitos que criaram para descrever o movimento dos astros ainda hoje estão tingidos por essas crenças, apesar de terem entrado no mundo da ciência. Quem hoje fala em signos e em zodíaco pode fazê-lo por acreditar numa influência dos astros na vida dos homens, mas pode também referir esses termos na sua moderna acepção científica. Há o zodíaco dos astrólogos e o zodíaco dos astrónomos.


A separação da astronomia e da mitologia ocorreu ainda no tempo dos gregos. Embora muitos cidadãos helénicos acreditassem literalmente nas histórias mitológicas, a maioria dos filósofos que reflectiam sobre o cosmos não via os astros como entidades mitológicas, mas sim como elementos de um mundo envolvente.


A separação da astronomia e da astrologia ocorreu muito mais tarde, já nos séculos XVI e XVII. Apesar de muitos pensadores gregos rejeitarem a astrologia, o certo é que a crença nos astros como condicionantes do futuro humano persistiu ao longo de toda a antiguidade clássica e se manteve até ao fim do Renascimento, sendo determinante mesmo entre as pessoas cultas da época. Talvez tenha sido a grande polémica sobre o sistema coperniciano que Galileu despertou que tenha determinado o desprestígio da astrologia no mundo científico. Se a escolha entre os grandes sistemas do mundo podia e devia ser resolvida pela observação e pelo raciocínio, então os homens de ciência deviam rejeitar crenças astrológicas impossíveis de testar empiricamente ou discutir racionalmente.


Com a separação entre a astronomia, a mitologia e a astrologia, perdeu-se a ideia antiga da unidade do mundo e do homem. Mas essa perca é, afinal, a grande conquista moderna da separação entre fé, princípios morais e actividade científica. É essa separação que permite o grande desenvolvimento moderno da ciência e o pluralismo cultural. Em vez de lamentar a divisão do pensamento humano, será melhor saudá-la como uma grande conquista da Humanidade.


Nos textos seguintes deste Tema do Mês discutiremos astronomia, astrologia e mitologia.



  • A história mitológica que abaixo reproduzimos é retirada do livro Zodíaco: Constelações e Mitos, Nuno Crato, Gradiva 2001.
    Trata-se de um conto que adapta livremente uma versão da lenda grega que envolve a luta entre o caçador Oríon e o Escorpião. Como o leitor verá, para além da beleza poética do mito, a história constitui uma óptima menmónica para a localização destas constelações no céu e para recordar os momentos de seu aparecimento e desaparecimento ao crepúsculo. Esta história é um exemplo das relações que existem entre a mitologia do céu e alguns factos astronómicos. Por ela se vê também como as histórias mitológicas podem servir de incentivo à observação das constelações.

    A Lenda de Oríon e Escorpião






















     Em princípios de Novembro, Orion nasce a leste cerca das 22 horas, em princípios de Dezembro, cerca das 20 horas. O mapa do céu mostra a posição das estrelas em relação ao horizonte leste em ambas as alturas.

    Orion era o maior dos gigantes. Era filho de Posídon, o deus do mar a quem os romanos chamavam Neptuno. Dizia-se que era filho também de Gaia, a Mãe Terra. Era um gigante poderoso. Do pai, tinha herdado o poder de andar sobre as ondas do mar. Da mãe, tinha herdado o porte gigantesco. Com os tempos, tornou-se esbelto e atlético, com uma bela figura, cobiçado pelas mulheres e pelas deusas. Desposou em primeiras núpcias Side, que se dizia ser a mais bela de todas as jovens da Grécia antiga. Mas Side era orgulhosa e gabava-se de ser mais bela ainda do que as imortais, mais bela do que a própria Hera, a rainha das deusas e esposa de Zeus. Ciumenta, Hera vingou-se e precipitou a jovem do cimo das montanhas do Tártaro, matando-a.

    Privado da esposa, Orion deambulou perdido pela Terra. A certa altura, ao passar pela ilha de Quios, famosa pela sua caça grossa, avistou Mérope, a princesa do reino, que tocava a sua flauta nas margens de um rio. Mal se viram, os jovens apaixonaram-se. Mérope nunca tinha visto um gigante tão belo e Orion nunca tinha visto uma jovem tão inocente e tão dotada. Mas os seus amores estavam também destinados à tragédia.

    O pai da jovem, o rei Enópion, era conhecido por ter introduzido o vinho tinto - o seu nome, em grego, significa "o que bebe vinho". Nessa altura, o vinho era ainda pouco conhecido e Enópion conseguia enganar os passantes e embriagá-los. Opondo-se aos amores dos dois jovens, conseguiu embriagar Orion. Quando o gigante estava ferrado no sono pesado do álcool, Enópion cegou-o com uma espada e conseguiu expulsá-lo do reino. Orion, contudo, com a ajuda de um menino que se sentou nos seus ombros e o guiou, conseguiu caminhar até ao Sol Nascente.

    Quando a deusa da aurora o viu, apaixonou-se pelo jovem gigante e decidiu ajudá-lo. Com as suas artes, conseguiu recuperar-lhe a vista. Orion ficou alguns tempos com a deusa, mas os seus amores foram curtos e em breve partiu para novas conquistas.



















     O mapa celeste mostra o céu de oeste em fins de Outubro pouco depois do ocaso. Na gravura mostra-se a posição do Sol abaixo da linha de horizonte, portanto invisível. As estrelas de Escorpião estão já muito perto do horizonte, portanto difíceis de observar.

    Ao longo das suas viagens, Orion tinha-se tornado um caçador exímio. Com as suas longas pernas e a sua agilidade, orgulhava-se de não haver animal que lhe escapasse. Com a sua espada e a sua clava, um cacete feito do pinheiro mais alto que tinha encontrado, orgulhava-se de conseguir matar qualquer animal que existisse sobre a terra. Orion passava dias e dias na caça, que se tornou a sua paixão. No decorrer das suas andanças, haveria de encontrar a deusa Ártemis, a que os romanos chamaram Diana, e que era também famosa por se dedicar apaixonadamente à caça de animais selvagens.

    Os dois famosos caçadores do mundo antigo juntaram-se e criaram uma forte amizade. Durante o dia, partiam à procura de novas florestas onde encontrassem animais selvagens. À noite, sentavam-se em redor da fogueira e contavam um ao outro as suas aventuras. Dizia-se que estavam apaixonados, mas a verdade é que Ártemis, deusa sempre jovem e casta, apenas pensava nos desportos, no ar livre e na caça.

    Ártemis era uma personagem misteriosa. Dizia-se que era a deusa da Lua, tal como o seu irmão Apolo era o deus do Sol - e a verdade é que ela se passeava nas noites de Lua Cheia. Dizia-se também que era fria e vingativa, que matava por gosto - e a verdade é que Apolo e a deusa se tinham muitas vezes entretido a massacrar jovens guerreiros. Talvez o gosto pelo sangue lhes tivesse ficado dos combates antigos com os gigantes que desafiavam Zeus, o chefe dos deuses que os dois irmãos ajudaram nessa guerra antiga.

    Ártemis e Orion eram amigos, mas a deusa, que se manteve sempre virgem, não queria nada mais do que a amizade. O que se passava com Orion nunca ninguém chegou a saber. É possível que se tivesse apaixonado por Ártemis, que era muito bela, de uma beleza atlética que devia ter agradado ao caçador gigante. Mas é possível que não, que as más línguas são capazes de tudo.

    O que se passou em seguida nunca ninguém soube explicar. Um dia, quando o gigante se passeava pelas terras de Delos, apareceu-lhe pela frente um escorpião gigantesco. Orion estava habituado a esmagar essas criaturas. Mas este escorpião era maior que qualquer dos animais que existia sobre a Terra. Era maior que o jovem caçador e tinha uma carapaça que nem a espada de Orion conseguia penetrar.

    Dizem uns que o escorpião fora enviado pela própria deusa Ártemis, pois uma noite Orion, não resistindo ao desejo, tinha querido violentá-la. Dizem outros que a besta fora enviada pela própria Gaia, a Mãe Terra, pois Orion tinha-se vangloriado de não haver animal que a Terra criasse que ele não pudesse vencer. O certo é que se seguiu uma luta furiosa e que o gigantesco escorpião, impenetrável à espada do caçador e indiferente aos seus golpes, conseguiu aplicar-lhe um golpe mortal, com o ferrão venenoso da sua cauda.

    Orion jazia já morto e ainda o escorpião continuava a ferrá-lo quando Zeus apareceu. Impressionado com o poder do animal, o chefe dos deuses levou-o para o céu. Comovido com o heroísmo do gigante vencido, transportou-o também para o firmamento, mas colocou-o em posição oposta à do seu vencedor, de forma que os dois inimigos pudessem estar nos céus sem nunca se verem. Assim estão até hoje: quando a Primavera começa, Orion desaparece no brilho do Sol; quando o Outono aparece, o perigoso escorpião é engolido pelo horizonte do ocaso.
  • O zodíaco dos astrónomos e o zodíaco dos astrólogos  Em altura incerta da evolução das sociedades humanas, certamente há muitos milhares de anos, na chamada pré-história, os nossos antepassados terão começado a notar que o aspecto do céu nocturno muda periodicamente e que o ciclo dessa mudança coincide com o ciclo das estações. De facto, ao movimento nocturno aparente das estrelas, derivado da rotação da Terra, sobrepõe-se um outro, mais lento, derivado da translação do nosso planeta, e que tem como resultado uma rotação completa da esfera celeste no decurso de um ano. 

  • No meio do Outono, por exemplo, a constelação de Carneiro nasce a leste logo ao princípio da noite, enquanto a de Capricórnio se deita a oeste logo a seguir ao Sol. Se seguirmos a posição de Carneiro ao longo das semanas, veremos que esta constelação passa a nascer no céu de leste cada dia mais cedo. No princípio do Inverno, já Carneiro aparece bem acima do horizonte ao começo da noite, quando as primeiras estrelas revelam o seu brilho. Algumas semanas mais tarde, já as noites se iniciam com essa constelação muito alto, acima do horizonte sul. Noite após noite, as estrelas parecem descrever um percurso no céu que as leva de leste para oeste. No fim do Inverno, a noite começa com Carneiro perto do horizonte oeste. Então, à medida que os dias avançam, essa constelação aparece cada vez mais brevemente, deitando-se logo a seguir ao Sol. No início da Primavera, a constelação não é visível. Semanas mais tarde, reaparece no céu nocturno, mas desta vez no horizonte leste e logo antes da madrugada. Há pois algumas semanas em que as estrelas de Carneiro não estiveram visíveis.

    Os astrónomos das primeiras civilizações perceberam que a posições do Sol e da constelação coincidiram no céu durante essas semanas em que a constelação não se conseguia observar: o Sol estava em Carneiro. Os observadores antigos perceberam também que havia outras estrelas no caminho do Sol e que esse caminho descreve um arco que atravessa o céu de leste para oeste: um círculo máximo sobre a esfera celeste a que se chama eclíptica. No nosso hemisfério, esse arco passa pela esfera celeste acima do horizonte sul.


    O calendário origina os signos













     A imagem mostra a posição do Sol visto da Terra e projectado contra a esfera celeste, no tempo dos Gregos antigos por alturas do solstício de Verão. Actualmente, projecta-se entre Touro e Gémeos por alturas do solstício

    Ao organizarem o seu calendário, os babilónios, tal como muitos outros povos, basearam-se no ciclo anual das estações, que é astronomicamente marcado pela passagem do Sol pelas constelações. Mas os babilónios procuraram harmonizar a medida solar do tempo com a medida lunar. Ora a posição do Sol no fundo estelar demora cerca de 365 dias e um quarto a perfazer uma rotação completa, num ciclo que é chamado ano sideral. Entretanto, a Lua demora cerca de 29 dias e meio a regressar à mesma fase, num ciclo chamado lunação ou mês sinódico. Num ano solar cabem pois 12 meses lunares, embora fiquem de fora cerca de 11 dias, o que sempre constituiu uma complicação para os calendários. É esta coincidência aproximada que levou à divisão do ano em doze meses e à criação dos doze signos do zodíaco.

    Ao que parece, os babilónios foram os primeiros a dividir em doze partes a banda celeste por onde o Sol passa no seu movimento aparente, dando a cada uma dessas partes o nome de uma constelação, ou seja, de uma área determinada da esfera celeste, constituída em função de um motivo imaginado pelo desenho das estrelas. Às constelações que estão no caminho do Sol deu-se o nome de signos. São os doze signos do zodíaco.

    A palavra "zodíaco" chegou-nos pelo grego "zoidiakos", adjectivo usado na expressão "zoidiakos kuklos", que designava o "círculo de animais" com que se representavam as constelações. A raiz do termo persiste ainda hoje nas línguas ocidentais em vocábulos como "zoológico". Modernamente, o zodíaco designa uma banda celeste com 8 graus para cada lado da eclíptica - a linha por onde o Sol parece deslocar-se. O Sol, a Lua e os planetas parecem todos mover-se na banda do zodíaco. Na realidade, são os planetas que rodam em torno do Sol. Mas rodam todos perto de um mesmo plano, pelo que nos parece que é o Sol que se movimenta no mesmo arco que a Lua e os planetas - o arco que passa pelos signos do zodíaco.


    A precessão


    Quando os antigos marcaram o trajecto do Sol contra o fundo estelar, o eixo de rotação da Terra tinha uma inclinação diferente da que tem hoje. Essa inclinação tem vindo a mudar, de acordo com um ciclo de cerca de 26 mil anos chamado ciclo de precessão. A precessão é muito lenta, mas é visível quando se comparam observações astronómicas feitas ao longo de diferentes séculos. Ao que parece, terá sido o astrónomo alexandrino Hiparco (século II a. C.) o primeiro a notar esse movimento da esfera celeste. Designou-o por precessão dos equinócios, pois ele é observável na deslocação do ponto da esfera celeste onde o Sol se projecta nos momentos dos equinócios. Assim, por exemplo, o início da Primavera, marcado pelo equinócio vernal (Março), coincidia antigamente com a passagem do Sol pela constelação Carneiro - Aries em latim - pelo que os astrónomos ainda hoje chamam a esse ponto celeste "primeiro ponto de Aries". A precessão fez com que o início da Primavera já não encontre o Sol nessa constelação, mas a astrologia, que herdou os signos dos gregos, não teve em conta esse desfasamento.

    Actualmente, as pessoas nascidas entre 21 de Março e 20 de Abril pertencem ao signo astrológico de Carneiro. Mas o Sol encontra-se nessa altura na constelação Peixes. O mesmo se passa com todos os signos. O Sol não entra a 21 de Maio em Gémeos, ao contrário do que a astrologia e a tradição apontam. Só entra na constelação de Castor e Pólux em 22 de Junho.

    Const.Desap. a oeste, no ocasoIngresso do Sol na constelaçãoEgresso do Sol da constelaçãoReaparecimento a leste, de madrugadaMelhor visibilidade Signo astrológico
    Carneiromeados de Abril19 de Abril14 de Maioprincípios de MaioOutubro e Novembro21 de Março a 20 de Abril
    TouroPrincípios de Maio15 de Maio21 de JunhoFins de JunhoDezembro e Janeiro21 de Abril a 20 de Maio
    Gémeosmeados de Junho22 de Junho20 de JulhoFins de JulhoJaneiro, Fevereiro e Março21 de Maio a 20 de Junho
    Caranguejomeados de Junho21 de Julho10 de AgostoFins de JulhoFevereiro e Março21 de Junho a 21 de Julho
    Leãofins de Julho11 de Agosto16 de Setembromeados de SetembroFevereiro, Março e Abril22 de Julho a 22 de Agosto
    Virgemprincípios de Setembro17 de Setembro30 de Outubroprincípios de NovembroAbril e Maio23 de Agosto a 22 de Setembro
    Balançameados de Outubro31 de Outubro22 de NovembroFins de NovembroMaio e Junho23 de Setembro a 22 de Outubro
    Escorpião
    Ofíuco
    meados de Outubro23 de Novembro
    29 de Novembro
    28 de Novembro
    16 de Dezembro
    princípios de JaneiroMaio, Junho e Julho23 de Outubro a 21 de Novembro
    Sagitáriomeados de Dezembro17 de Dezembro18 de JaneiroFins de JaneiroMaio, Junho e Julho22 de Novembro a 21 de Dezembro
    Capricórniomeados de Janeiro19 de Janeiro15 de Fevereiroprincípios de MarçoJunho e Julho22 de Dezembro a 21 de Janeiro
    Aquárioprincípios de Fevereiro16 de Fevereiro11 de Marçoprincípios de AbrilAgosto e Setembro21 de Janeiro a 20 de Fevereiro
    Peixesprincípios de Março12 de Março18 de Abrilprincípios de Maio Setembro e Outubro21 de Fevereiro a 20 de Março
    A tabela mostra os momentos de entrada (ingresso) e saída (egresso) do Sol, referidos às fronteiras dessas constelações. As datas de desaparecimento e de aparecimento das constelações no céu nocturno são apenas muito indicativas e estão referidas aos asterismos, isto é, aos padrões de estrelas identificados com as figuras mitológicas. As datas que se referem como de melhor visibilidade das constelações coincidem com a altura em que a parte central do asterismo culmina a sul por volta da meia noite. Devido à precessão, há um desfasamento entre as datas de passagem do Sol pelas constelações e os signos do zodíaco, tal como considerados pelos astrólogos. Durante a idade média, a astrologia debateu-se com este problema sem o conseguir resolver. Actualmente, os astrólogos esquecem-no simplesmente, aceitando signos astrológicos desfasados das constelações que lhes deram o nome.

    Ofíuco, o décimo terceiro signo

    Para os antigos, as fronteiras das constelações estavam pouco definidas, o que importava eram os agrupamentos de estrelas, os chamados asterismos, que associavam a personagens míticas. Em 1922, quando a União Astronómica Mundial chegou a um acordo para dividir o céu em áreas perfeitamente determinadas, foram estabelecidas 88 constelações, cobrindo ambos os hemisférios. Na zona do zodíaco e em outras áreas, procurou-se respeitar a divisão estabelecida pelos antigos, mas foi necessário proceder a algumas adaptações, de forma a englobar os asterismos antigos que se sobrepunham. Assim, as modernas constelações do zodíaco não dividem a eclíptica em doze partes iguais. Além disso, há uma constelação que os antigos não incluíam no zodíaco e por onde o Sol passa: é a Ofíuco, que representa o deus da medicina dos antigos gregos.
  • Pedro Nunes e a astrologia   

























     Pedro Nunes com a sua poma (esfera) e um compasso, tal como aparece representado no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa

    Abraão Zacuto (fl. 1500) era astrólogo, tal como os outros matemáticos e cosmógrafos que auxiliaram os pilotos dos Descobrimentos. Igualmente astrólogos eram Tycho Brahe (1546-1601), Johannes Kepler (1571-1630) e outros astrónomos respeitadíssimos pela comunidade científica moderna. O próprio Galileu (1564-1642) fez horóscopos, hoje recolhidos no volume 81 dos seus manuscritos. Não é pois de espantar que Pedro Nunes se possa ter dedicado à prática da Astrologia, embora seja perfeitamente evidente pelos seus escritos que as suas preocupações maiores eram de ordem matemática e astronómica.

    No século de Pedro Nunes (1502-1578), a astrologia era aceita entre os homens cultos com perfeita naturalidade. Já tinham surgido alguns autores a criticá-la frontalmente, nomeadamente Giovanni Pico della Mirandola (1464-1494), mas esses críticos eram marginais ao espírito da época.

    A astronomia e a astrologia eram estudadas em conjunto. Os homens que sabiam registar e prever o movimento dos astros eram os mesmos que sabiam estabelecer horóscopos. A astrologia era estudada aprofundadamente nos cursos de medicina, pois aceitava-se, de acordo com o que Cláudio Ptolomeu de Alexandria (séc. II d.C.) tinha escrito e sistematizado no seu Tetrabiblos, que os astros tinham uma influência determinante sobre as doenças. Para se ser médico era pois necessário ser-se astrólogo. Pedro Nunes, que se tornou Doutor em Medicina, a única área científica que na época fornecia o grau académico máximo, fez certamente horóscopos para reis e príncipes e foi naturalmente consultado sobre temas astrológicos. O mais provável é que, mesmo que se tivesse interessado pouco pela astrologia, Pedro Nunes não se questionasse sobre ela. Só muito mais tarde, com a Revolução Científica e a crítica sistemática às crenças antigas e ao misticismo, é que a astrologia e a astronomia se separaram como inimigas. Na época de Pedro Nunes, não se questionavam crenças da mesma forma que mais tarde se passou a fazer.

    O que havia desde há séculos era discussões sobre aspectos da astrologia, sendo muito criticada e rejeitada pela Igreja Católica a chamada astrologia judiciária, isto é, a prática de aceitar que os astros determinassem ou influenciassem decisivamente a vida e o futuro dos homens. A Igreja criticava essa versão da astrologia por esta se opor ao livre arbítrio, princípio fundamental da doutrina católica. Se o homem tinha a capacidade de escolher entre o Bem e o Mal, então o seu futuro não podia estar escrito nos astros.


    Ainda por outro motivo via a Igreja com suspeita certas práticas astrológicas: a crença na influência determinante dos corpos celestes poderia desembocar na idolatria dos astros. Por essa razão, o mundo católico aceitava a prática astrológica enquanto esta discutisse influências sobre o mundo material, nomeadamente o tempo, as secas, as colheitas e, naturalmente, a saúde dos homens. Mas não podia aceitar o poder dos astros sobre a alma nem que estes determinassem o futuro, como o defendia a astrologia judiciária.

    Pedro Nunes refere-se à astrologia apenas uma vez, na introdução ao seu livro De crepusculis (1542). O que diz, contudo, é muito breve. Dirigindo-se ao rei D. João III, refere-se ao príncipe D. Henrique, futuro Cardeal Rei, de quem era tutor. Diz que o seu discípulo "compraz-se de modo admirável com a teórica da Astronomia, isto é, da ciência que se ocupa do curso dos astros e da universal composição do céu, que não da crendice vã e já quase rejeitada que emite juízos sobre a vida e a fortuna."




  • Na mesma obra em que se refere de passagem à astrologia, Pedro Nunes propõe um processo de subdivisão de escalas que viria a ser conhecido como nónio e que seria uma das criações do matemático que lhe dariam maior projecção internacional.

    Na gravura vê-se réplica do único instrumento da época que sobrevive e que está dotado de nónio. Trata-se do Quadrante de Kynuyn, fabricado em 1595 em Londres e descoberto há poucos anos em Florença pelo comandante Estácio dos Reis

    Pedro Nunes e a Astrologia1, por Gomes Teixeira













     Gomes Teixeira (1851-1933) foi um dos maiores matemáticos portugueses de sempre e, no fim da vida, um notável historiador das matemáticas em Portugal

    Percorrendo os belos livros do ilustre Conde de Sabugosa, reconhece-se claramente, pela forma e pelos assumptos, que foram escritos por pena de fidalgo português que ama a sua Pátria. Com efeito, o estilo é simples e nobre, a linguagem é elegante e vernácula e os assumptos são tirados da História de Portugal, fonte abundante de Lendas encantadoras, de Narrativas interessantes, de Tragédias que emocionam e de Epopeias que assombram. Nas suas Neves de Antanho encontra-se um artigo consagrado a Pedro Nunes e a sua filha Guiomar, ao qual vou ajuntar aqui uma Nota singela, fragmento de um livro inédito2.


    A Astrologia foi introduzida na Europa, juntamente com a Astronomia, pelos Árabes e Judeus, e o numero de crentes nos seus prognósticos era tão grande e a fé neles tão intensa que os médicos eram obrigados a conhecê-la, ainda que não acreditassem nos seus vaticínios, a fim de poder tirar todo o proveito material da sua profissão.
    No mesmo caso estavam os astrónomos. Regiomontano e Kepler, por exemplo, tiveram de escrever obras sobre praticas astrológicas a fim de obter recursos para poderem entregar-se aos cálculos e observações que lhes imortalizam os nomes. Isto mesmo afirmou o próprio Kepler, dizendo que a Astronomia tem uma filha muito doida, chamada Astrologia, mas que a mãe não despreza a filha, porque esta é rica e sustenta a mãe, que é pobre.
    No século XVI, em que viveu Pedro Nunes, ainda a Astrologia era forte e respeitada, mas começava a decair, combatida pela Igreja católica e por muitos homens cultos; mas o golpe mortal só lhe foi dado mais tarde pelos trabalhos dos filósofos e sábios dos séculos seguintes.
    Em Portugal, no referido século XVI, misturaram ainda André do Avelar, no seu Repertório dos tempos, e Manoel de Figueiredo, na sua Hydrogaphia, sérios assuntos astronómicos com variadas fantasias astrológicas; e, no mesmo século, o judeu português. Francisco Faleiro, residente em Sevilha, publicou na sua Arte de marear, ao lado de sã doutrina sobre Astronomia aplicada á Náutica, duas páginas onde se fala da influência de Saturno sobre os melancólicos, de Vénus sobre os fleumáticos, etc.
    Nas Obras de Pedro Nunes só se fala da Astrologia na Introdução ao livro De Crepusculis, mas é para qualificar a aplicação da Astronomia às predições sobre a vida e sorte dos homens e das nações como quimeras e como superstições felizmente quase extintas. Por isso soubemos com surpresa, pelas Neves de Antanho, de um acto de pratica astrológica atribuído ao grande matemático pelo Padre José Pereira Bayão, que escreveu no século XVIII.
    Este acto passou-se em 1568 quando, ao atingir D. Sebastião a idade de catorze anos, a Rainha Regente D. Catarina d'Áustria resolveu entregar-lhe o governo de Portugal.
    Dias antes de se realizar a cerimonia da posse do novo Rei, dirigiu-se Pedro Nunes à Regente para a avisar de que convinha retardar a entrega do governo ao neto, porque no dia que se escolhera estavam os astros em posição de mau agouro, e que por isso, se EI-Rei começasse a governar nesse dia, seria o seu reinado instável, cheio de inquietações e de curta duração.
    D. Catarina observou que já não era possível fazer-se a transferência da cerimonia para outra ocasião, por estarem feitos os preparativos, e, diz o cronista, Pedro Nunes terminou, exclamando: vejo que são inevitáveis os trabalhos deste reino da parte dos quais Vossa Alteza será testemunha ainda que não dou remate deles!
    Como explicar esta contradição entre as opiniões de Pedro Nunes na força da vida e na sua velhice?
    De certo naquele momento solene, o afecto á criança de 14 anos, que acabava de ser seu discípulo e que ia tomar nas suas mãos o peso de um ceptro, lhe despertou na alma alguns restos de superstição inconsciente que lá tivessem deixado as quimeras da educação filosófica que recebera na sua juventude.
    Mas talvez a narrativa de Bayão seja mais uma lenda (deturpação de um facto sucedido quando D. Duarte subiu ao trono, também contado pelo Conde de Sabugosa), a ajuntar a muitas outras, sobre o visionário e simpático monarca, mistura de louco, de herói e de santo, que, julgando-se destinado por Deus a dilatar pela Mauritânia o domínio de Portugal e a fé de Cristo, ficou a dormir lá eternamente em campa rasa e em lugar desconhecido, sem uma cruz a indicar que jaz ali um Cristão, sem uma coroa a indicar que jaz ali um Rei.
    Pedro Nunes morreu poucos dias antes da tragédia de Alcácer Quibir3, quando Portugal moribundo já não precisava dos cálculos do seu cosmógrafo.
    F. Gomes Teixeira.
     REITOR HONORARIO DA UNIVERSIDADE DO PORTO
     
    1In Conde de Sabugosa: In Memoriam, Portugália Editora, 1924
    2Refere-se Gomes Teixeira ao texto "Elogio histórico de Pedro Nunes", incluído no seu livro Panegíricos e Conferências, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1925.
    3Trata-se de deslize de Gomes Teixeira, sempre muito cuidadoso nas suas referências. Segundo mostrou documentalmente António Baião, Pedro Nunes faleceu em 11 de Agosto de 1578, enquanto a batalha de Alcácer Quibir ocorreu a 4 do mesmo mês. No livro em que veio a incluir este extracto, G. T. corrigiu o erro de datas.
Autoria:
Nuno Crato
Professor Associado de Matemática e Estatística,
 Instituto Superior de Economia e Gestão, Lisboa
Associado do NÚCLIO 
 Fonte:
Portal do Astrónomo-Portugal
http://www.portaldoastronomo.org/tema94.php