MATEMÁTICAS E ASTRONOMIA
Gustave Le Bon
A Civilização árabe (1884) – volume V
Capítulo III - MATEMÁTICAS E ASTRONOMIA
IMATEMÁTICAS ÁRABES.
O estudo das matemáticas foi bastante generalizado entre os árabes, os quais cultivaram muito a álgebra; chegou-se mesmo a atribuir-lhes a invenção desta ciência, embora os princípios dela fossem conhecidos muito tempo antes.
Na verdade os progressos que lhe deram transformaram-na completamente, pois a eles se devem também as primeiras aplicações da álgebra à geometria.Tão geral era a afeição à álgebra que no tempo de Alma-mum, em princípios do século IX da nossa era, este príncipe ordenou a um matemático da sua corte que compusesse um tratado de álgebra popular, o que foi feito por Muhammad bnu Mussa; da tradução deste livro tiraram mais tarde os europeus as primeiras noções dessa ciência.
A impossibilidade de expor os trabalhos dos árabes sem entrar em pormenores excessivamente técnicos, obriga-me a mencionar apenas os mais importantes, como a introdução das tangentes nos cálculos trigonométricos, a substituição dos senos pelas cordas, a aplicação da álgebra à geometria, a resolução das equações cúbicas e o estudo aprofundado das secções cónicas. Os mesmos árabes transformaram completamente a trigonometria esférica, derivando a resolução dos triângulos de certo número de teoremas fundamentais que ainda lhe servem de base
A introdução das tangentes na trigonometria foi de uma importância considerável. "Esta feliz revolução da ciência — escreve Chasles em seu Aperçu historique ães méthodes en géométrie, — desterrou dela as expressões compostas e incômodas que continham o seno e o coseno da incógnita, mas não se completou senão 500 anos depois entre os modernos, atribuindo-se tal honra a Regiomontano; e quase um século depois deste, ainda tal descoberta não chegara aos ouvidos de Copérnico".
II
A ASTRONOMIA ENTRE OS ÁRABES
A astronomia foi uma das primeiras ciências cultivadas em Bagdad, tendo por adeptos não apenas os árabes mas também seus sucessores, especialmente Olug-Beg, neto de Tamer-lão, famoso pela publicação de suas Tábuas Astronômicas; este deve ser considerado o último representante da escola de Bagdad, que floresceu verdadeiramente de 750 até 1450 da nossa era, ou seja durante 700 anos. Embora Bagdad fosse um dos principais centros de ensino astronômico, não era o único; desde a Ásia central até ao Atlântico abundavam os observatórios, havendo-os em Damasco, Samarcanda, Cairo, Fez, Toledo, Córdova, etc.
As principais escolas de astronomia
foram as de Bagdad, Cairo e Espanha.
Logo que os califas abássidas instalaram em Bagdad, cidade fundada em 762, a capital de seu império, deram grande impulso ao estudo da astronomia e das matemáticas, mandaram traduzir Euclides, Arquimedes e Ptolomeu, bem como todos os livros gregos que tratavam dessas ciências, e chamaram para a sua corte os sábios que gozavam de alguma reputação.
No tempo de Harun-al-Raschid, e especialmente no de seu filho Almamun (813-833), a escola astronômica de Bagdad produziu importantes trabalhos, cumprindo citar a coleção de observações feitas nos observatórios da própria Bagdad e de Damasco numa obra intitulada Tábua comprovada, que infelizmente não chegou até nós. Podemos contudo avaliar a exatidão das observações ali registradas lembrando que determinavam a obliqüidade da elíptica com grande precisão, fixando-a em 23° 33′ 52", número quase igual à cifra moderna.
As observações que eles fizeram a respeito dos equinócios permitiram-lhes calcular de modo preciso a duração do ano, e chegaram mesmo a tentar aquela operação fundamental que só daria resultado mil anos depois, ou seja a medição do arco do meridiano terrestre. Efetuaram essa medição procurando averiguar exatamente a distância entre o local escolhido pelos observadores, ccmo ponto de partida, e o lugar onde se encontraram quando a altura do polo mudou de um grau. Porém, como ignoramos o valor exato da unidade de longitude empregada, não sabemos que resultado deu a operação; aliás, considerada a extensão mínima do arco medido, é pouco verossímil que a cifra obtida fosse muito correta.
Entre os demais trabalhos dos astrônomos da escola de Bagdad, devemos mencionar suas efemérides da posição dos planetas e a determinação exata da precessão dos equinócios.
Chegaram até nós os nomes de alguns sábios dessa época : um dos mais famosos foi Albattani (Albatênio) que vivia no século IX e morreu em 929, desempenhando entre os árabes um papel análogo ao de Ptolomeu entre os gregos; sua obra contém, como as dc grego, a exposição dos conhecimentos da época, mas as tábuas que deixou não chegaram até nós, e apenas foram conhecidas na Europa através de uma versão latina, infelizmente pouco fiel, intitulada De Scientia steUarum. O ilustre Lalande coloca este autor entre os vinte astrônomos mais famosos do mundo.
Amayur e seu filho, que fizeram suas observações desde 883 até 933, escreveram também tábuas astronômicas, e o último reconheceu que os limites da maior latitude da lua eram variáveis, contra o que seus antecessores haviam dito, especialmente Ptolomeu. O estudo destas anomalias serviu de ponto de partida na descoberta de uma terceira desigualdade lunar.
Os três filhos do historiador Mussa biifcDjakir, que viviam no século IX, foram também reputados astrônomos e determinaram a precisão dos equinócios com exatidão até então desconhecida; estabeleceram efemérides a respeito da situação dos planejas4 e mediram em 954 a latitude de Bagdad, que colocaram nos 33°20′, cifra que apenas difere dez seguhdos da exata?
Fig. 228 — Antigo astrolábio árabe
(Museu Espanhol de Antigüidades).
Entre os muitos astrônomos que sucederam aos citados, o mais célebre foi Abul-Uafa, que morreu em Bagdad em 998-A descoberta que Sedillot fêz, há alguns anos, de um manuscrito árabe, prova ter esse astrônomo reconhecido a desigualdade lunar de que falamos há pouco; surpreendido com a imperfeição com que Ptolomeu dava a teoria da lua, procurou as causas disso e encontrou, além da equação do centro e da evecção, uma terceira desigualdade hoje conhecida pelo nome de variação.
Esta descoberta, que se supunha feita por Tico-Brahe, 600 anos depois, possui grande importância, e Sedillot deduz por ela que nos fins do século X a escola de Bagdad tinha chegado aos limites do conhecimento astronômico possíveis sem óculos ou telescópios. Contudo Abul–Uafa possuía instrumentos muito aperfeiçoados e conseguiu observar a obliqüidade da elíptica com um quarto de círculo de vinte e um pés de raio, o que mesmo para os observadores modernos é uma dimensão considerável.
Os acontecimentos que determinaram em fins do século X a decadência do poder político do califado de Bagdad, foram também causa do enfraquecimento dos estudos. O desmembramento do império, as invasões dos seldjucidas, as cruzadas e a irrupção dos mongóis conturbaram por muito tempo o país, sendo Bagdad substituída como capital científica do Islam pelo Cairo e pelas grandes universidades árabes da Espanha.
Contudo, nem por isso as ciências deixaram de ser cultivadas em Bagdad; tão afeiçoados lhe eram os árabes que nem guerras, lutas civis ou invasões podiam impedir que delas se ocupassem, e tão grande influência exerceram sobre os invasores por meio da extensão dos seus conhecimentos, que o conquistador se tornou protetor do conquistado.
Nada mais surpreendente que ver a civilização dos árabes triunfando do barbarismo dos conquistadores e estes concorrendo às escolas de seus vencidos. A civilização dos árabes sobreviveu muito tempo ao seu poder político, e graças a essa vantagem continuou a prosperidade científica de Bagdad, embora essa capital houvesse caído nas mãos do estrangeiro.
A escola de astronomia
continuou florescendo até meados do século XV,
nunca deixando de publicar importantes trabalhos.
Albiruni, conselheiro de Mahmud-il-Gaznauí (1030), publicou tábuas de longitude dos principais lugares do mundo, visitou a índia e deu a conhecer aos hindus os trabalhos da escola de Bagdad. Em 1709 o sultão seldjucida Malic Xah mandou fazer observações, cujo resultado foi uma reforma do calendário seis séculos anterior à reforma gregoriana, e que até lhe foi superior, pois havendo no ano gregoriano um erro de 3 dias em 10.000 anos, o ano árabe limita-se a um erro de dois para o mesmo período.
Fig. 229 — Antigo astrolábio árabe
(a outra face do instrumento anterior).
Os mongóis não se mostraram menos favoráveis aos sábios que os seldjucidas. Em 1259 o Cam dos mongóis Hulagu atraiu para a sua corte os árabes mais distintos e mandou construir em Megara um grande observatório modelo. Kublai Kan, irmão de Hulagu, trasladou imediatamente para a China, da qual fêz a conquista, os estudos astronômicos de Bagdad e do Cairo, sabendo-se agora que dos livros destes tiraram os astrônomos chineses, e especialmente Ko-Cheu-King (1280) seus principais conhecimentos.
É lícito portanto dizer
que por intermédio dos árabes
a ciência da astronomia se propagou pelo universo.
Quando Tamerlão instalou em Samarcanda o centro de seu gigantesco império, que iria absorver o Turquestãc, a Pérsia e a índia, rodeou-se também de sábios árabes, e seu neto Olug-Beg, soberano de Samarcanda, que viveu em meados do século XV, tinha também grande apreço pela astronomia, vivendo entre grande número de sábios árabes. Suas riquezas permitiram-lhe construir instrumentos de perfeição até aí não alcançada, e diz-se que se servia de um quarto de círculo cujo raio era tão alto como a Santa Sofia de Constantinopla. Olug-Beg deve ser considerado o último representante da escola de Bagdad; pela importância de seus trabalhos este astrônomo encadeia os antigos aos modernos, pois apenas século e meio o separam de Kleper.
A obra que em 1437 publicou Olug-Beg, dá o quadro exato dos conhecimentos astronômicos da escola árabe em meados do século XV. A primeira parte é um verdadeiro tratado de astronomia, onde o autor fala das divisões do tempo, do calendário e dos princípios gerais da ciência. Ocupa-se depois das questões de astronomia prática, como o cálculo dos eclipses, formação e emprego de tábuas, etc., contendo estas últimas certos catálogos de estrelas, os movimentos da lua, do sol e dos planetas e a longitude e latitude das principais cidades do mundo. Entre as latitudes figura especialmente a de Samarcanda, que não encontrei nas obras modernas, e que o autor fixa em 39° 27′ 28".
A obra termina com algumas considerações sobre a
astrologia, ciência imaginária muito apreciada naquele tempo, e que causou a morte de Olug-Beg, pois tendo êle deduzido da conjunção de alguns planetas que seu filho mais velho o mataria, tirou-lhe todas as funções: este se rebelou contra êle, venceu-o e obrigou-o a fugir para o Turquestão, de onde regressou a Samarcanda apesar das predições dos astros. Foi quando o filho o matou. A crença na
astrologia foi antigamente geral entre os astrônomos, sem excetuar os da Europa, até uma época muito próxima da nossa.
professava essa crença,
e escreveu diversos almanaques proféticos.
Fig. 230 — Face anterior de um astrolábio árabe,
conservando na Biblioteca Nacional de Paris,
segundo uma fotografia.
Ao lado da escola astronômica de Bagdad cumpre colocar a do Cairo, cidade que, separada do califado daquele nome em fins do século X, logo rivalizou com a capital científica do Islam. Com efeito, seus soberanos tiveram a honra, como os de Bagdad, de proteger a astronomia, e o observatório erguido no alto de Mokatam, onde hoje está a cidadela, chegou a ser um estabelecimento de primeira ordem. Foi ali que Ibn Djunis, morto em 1007, redigiu no reinado de Al-hákem a grande tábua chamada hakemita, a qual substituiu todas as que até então haviam servido e foi incluída nas obras sobre astronomia aparecidas depois, mesmo a do chinês Ko-Cheu–King, em 1280.
Segundo Ibn-nu-Nabdi, que residia no Cairo em 1040, a biblioteca dessa cidade possuía então duas esferas celestes e 6.000 volumes sobre matemáticas e astronomia.
Não menos importantes foram os trabalhos astronômicos dos árabes de Espanha, mas a destruição sistemática de quase todos os seus manuscritos apenas permitiu a sobrevivência de uma pequena parte de seus trabalhos. Os que escaparam da fogueira são raros, não foram traduzidos e provavelmente nunca o serão, pois só o poderiam fazer pessoas que ao mesmo tempo soubessem bem o árabe e conhecessem a fundo a astronomia.
A maior parte dos astrônomos árabes de Espanha conhe-cêmo-los apenas de nome, mas embora as indicações que temos sobre seus trabalhos sejam muito sucintas, bastam para provar sua importância. Sabemos assim que Arzachel, que viveu pelo ano 1080 da nossa era, fêz 402 observações para determinar o apogeu do sol, e estabeleceu também com grande precisão o movimento de precessão dos equinócios, que fixou em 50", justamente o número das nossas tábuas modernas. Arzachel observava com instrumentos por êle mesmo inventados, e construiu relógios que eram a admiração de Toledo.
Fig. 230 — Face posterior do mesmo astrolábio.
Embora nos faltem as obras dos árabes de Espanha, podemos formar opinião do seu conteúdo pelas idéias que delas tiraram os autores cristãos contemporâneos. É assim que do estudo das obras astronômicas do
rei Afonso X de Castela e de diversos documentos análogos, Sedillot concluiu terem-se os árabes antecipado a Kleper e Copérnico na descoberta do movimento elíptico dos planetas e na teoria da mobilidade da terra.
As tábuas astronômicas
de Afonso X, chamadas afonsinas,
foram completamente tomadas dos árabes.
Os astrônomos das escolas da África, especialmente de Tânger, Fez e Marrocos, rivalizaram com os de Espanha, porém conhecemos suas obras tão pouco quanto as destes últimos. Todavia, chegamos a saber que um deles, Abul-Has-san, de Marrocos, que vivia no princípio do século XIII, determinou com precisão muito superior à dos antigos a latitude e longitude de 41 cidades da África, entre Marrocos e o Cairo, numa extensão de mais de 900 léguas.
Abul-Hassan registrou suas observações num livro intitulado Dos princípios e dos fins, parte do qual Sedillot traduziu. Nele encontramos notícias curiosas acerca dos instrumentos astronômicos de que se utilizavam os árabes.
Estes conheceram apenas os relógios de sol, como meio de medir com precisão o tempo; como naquelas épocas ainda não se tinha aplicado o pêndulo aos relógios, careciam eles da precisão necessária às investigações astronômicas.
Os árabes observavam os ângulos por meio de quartos de círculo e de astrolábios, e muitos destes instrumentos chegaram até nós. Três encontram-se na Biblioteca Nacional de Paris, e um deles é reproduzido nesta obra.
A construção desses instrumentos
é tão engenhosa que ainda hoje
seria difícil fazê-los melhor.
O princípio do astrolábio é muito simples: consiste num disco metálico dividido em graus, sobre o qual dá voltas uma alidade com seu furo em cada extremo. Como o instrumento é suspenso por uma argola que tem na cabeça, e portanto em posição vertical, a alidade dirige-se para o sol, e quando os raios solares passam pelos dois orifícios que a terminam, é suficiente anotar a altura do astro no ponto onde se deteve.
Fig. 232 — Astrolábio árabe de Felipe II ãe Espanha
(Museu Espanhol ãe Antiguidades).
Os quartos de círculo utilizados naqueles observatórios eram às vezes de enormes dimensões. Hoje não mais nos serviriam, porque graças ao engenhoso invento do vernier, ou nónio, possuímos um meio de ler os minutos e até os segundos em pequenos instrumentos; compreende-se todavia que um círculo onde estivessem representadas as divisões dos graus em minutos e segundos devia ter um raio muito grande.
limitavam-se ordinariamente a dividir
o minuto em doze partes, ou seja a fazer divisões
que representavam cinco segundos cada uma.
Os árabes mediam também a altura do sol por meio da longitude da sombra que um ponteiro de dimensão especial traça num plano horizontal, observação que se revela bastante exata quando se dá grande altura ao instrumento.
Podem-se resumir as descobertas astronômicas dos árabes na enumeração seguinte: introdução, a partir do século X, das tangentes nos cálculos astronômicos; formação das tábuas dos movimentos dos astros; determinação rigorosa da obliqüidade da elíptica e de sua diminuição progressiva; apreciação exata da precessão dos equinócios, e primeira determinação precisa da duração do ano. Além disso deve-se-lhes a averiguação das irregularidades da maior latitude da lua e a descoberta da terceira desigualdade lunar, hoje designada com o nome de variação, e que se supunha ter sido determinada por Tico-Brahe, pela primeira vez em 1601.
Tradução
de Augusto Souza.
Fonte: Paraná Cultural ltda