Contraluz
FOTO: Carlos Fernandes
Aninhadas na fundura da carne, numa quietude que nada parece perturbar, as palavras detêm-se, mudas e serenas. Nem a bravata do vento, nem o desassossego das marés, nem a inclemência das tempestades as demove da sua invisível e imóvel existência. Mas vem uma certa inclinação do sol, um peculiar revérbero do astro-rei, um contraluz engendrado do intenso conflito entre a claridade e a sombra e logo o peito se abre à debandada. E as palavras, como vento na seara, fazem soar o tropel das sílabas, rumorejando ao entardecer.
dormem as palavras
nas profundezas do peito
- em doce apatia
basta o sol em contraluz
logo acorda a poesia
o olhar do pássaro
FOTO: Carlos Fernandes
Era um pássaro com olhos de céu. Neles morava o brilho do sol e o rumor da folhagem num dia de vento, o rasto ondulante do rio lambendo a planície, o vigor de uma canção alegre, o ténue perfume de um gole de água fresca numa tarde de Verão.
O céu nos olhos do pássaro não tinha margens, nem muros, nem grades, nem limites de qualquer espécie. Era um céu aberto, sem nuvens, sem mancha nem mácula.
O pássaro com olhos de céu aprendera no silêncio a mais requintada das melodias. Imóvel no seu poleiro, ensaiava a vertigem do voo no infinito da paisagem.
num voo errante -
paira sobre o horizonte
o olhar do pássaro
traz em si a melodia
delicada do silêncio
A sombra do aço
FOTO: Carlos Fernandes
O amplexo dos cabos sustém a gigantesca espínula que aguilhoa o dorso íngreme da serra, arreigando à terra a avidez vertical do lucro. Corrompendo a sua natural disposição. Domando-a, como um cavalo selvagem transformado em triste muar de carga.
Já a força bruta das máquinas lhe devorou, a pouco e pouco, os flancos, no rasgão obsceno das pedreiras. E o desmazelo dos homens a transmutou em mero pátio de despejos.
Assim se engendra um progresso que todos sabem falso. Feito da ambição perdulária de quem não tem amanhãs.
A sombra do aço
marca a ilharga da serra
- qual metal em brasa
desdizendo a evidência
de que o mundo é a nossa casa.