Nasceu em Jarnage, Departamento de Creuse, antiga Província de Marche, a 3 de dezembro de 1.767.
De uma família monarquista, após estudar humanidade e filosofia, entrou para o exército francês, aos 18 anos.
Sobreviveu à Revolução Francesa e à era Napoleônica.
Lutando contra as forças revolucionárias, vencido, fugiu, com os militares, para a Alemanha, integrando-se à legião realista do Visconde Mirabeau, formada de imigrantes.
Bateu-se valentemente, foi ferido na Batalha de Bertscheim.
Passou a fazer parte do Regimento de Mortemart.
Derrotado por Napoleão, seguiu o Regimento para a Inglaterra, sendo enviado pelos ingleses a Portugal., em 1.797, para defender as terras lusitanas de possível invasão napoleônica.
Criada, em Lisboa, a Guarda Real de Polícia A PÉ e A CAVALO, para ela entra Guido Marlière em 1.802, como Porta Estandarte.
Começa aí, sua vida no Exército Português.
Alferes em 1.807, acompanhou depois a Família Real na fuga para o Brasil.
Em 1.810 foi promovido a Tenente; Capitão e Diretor Geral dos Índios em 1.816; Major em 1.821, Tenente-Coronel em 1.823 e Comandante de todas as Divisões do Rio Doce; e, finalmente, Coronel de Cavalaria em 1.827. Reformado em 1.829.
Enviado em 1.813, para pacificar o Presídio de São João Batista (Visconde do Rio Branco), conseguiu apaziguar as tribos Kropós, Croatas e Puris, trazendo-as à civilização.
Continuou, com seus soldados, a abrir estradas, varando florestas virgens, na antiga "Mata", muito mais vasta que a atual, que vinha do Jequitinhonha, pela zona siderúrgica, a São Domingos do Prata, Abre campo, até Rio Pomba, indo, pelo Vale do Rio Doce e do Jequitinhonha, atingir os Rios Mucuri e São Mateus, numa imensa região desconhecida e perigosa, pela presença de indígenas antropófagos.
É bom verificar que Marlière conseguiu pelo espírito de retidão e justiça, pela mansidão e amizade, o em que outros falharam, pelas armas.
Seu processo era dar alimentos e ferramentas aos índios, ensinar-lhes a agricultura, aprender-lhes a língua e atraí-los ao adiantamento.
Tinha amor aos selvagens.
A pacificação e aldeamento dos Botocudos, ferozes e devoradores de carne humana, foi, sem contestação, a maior conquista de Guido Marlière.
Entanto, sua obra civilizadora abrange centenas de tribos, além dos Puris, Kropós, Croatas, Nacnenuques, Malalis, Manhuaçus, Gracnuns, Quejaurins, Machacalis e outros.
Numerosas povoações e municípios resultaram dos aldeamentos indígenas de Marlière, entre os quais citamos os seguinte : Guidoval, Visconde do rio Branco, Guiricema, Cataguases, São Geraldo, Muriaé, Miraí, Astolfo Dutra, Conselheiro Pena, Governador Valadares, Procrane, Tarumirim, Resplendor, São Domingos do Prata, Mesquita, Marlière, Jaquaraçu, Jequitinhonha, etc..
Marlière falava várias línguas, como o francês, alemão, inglês, português, o tupi, a áspera linguagem dos tapuias.
Sobre costumes e lendas dos silvícolas, escrevia nos jornais de Vila Rica, a "Abelha do Itacolomi " e o " Universal ".
Maçom de alto gabarito, Guido era, em 1.821, Venerável da Loja "Mineiros Reunidos", de Vila Rica.
Fundado o Grande Oriente do Brasil no dia 16 de junho de 1.822, incontinente Marlière pediu filiação, ao mesmo, da Oficina Mineira.
A integração foi deferida, como consta da Ata da Sessão Nº 8, de 31 de julho de 1.822, do Grande Oriente do Brasil.
Foi, dessa forma, a primeira Loja do interior a se filiar, cerca de um mês apenas após a criação da Potência Maçônica, revelando o zelo e a atividade de Guido.
Em vista dessa integração, Marlière foi nomeado o primeiro Delegado do Grande Oriente do Brasil na Província de Minas Gerais.
Retirando-se para a sua Fazenda GUIDWALD, no atual município de Guidoval, antigo SAPÉ DE UBÁ, Marlière faleceu a 5 de junho de 1.836, ante a consternação geral e lágrimas dos selvagens.
Texto extraído do Livro " O Segredo revelado de Guido Marlière" de ARY GONÇALVES.
Mais informações sobre Guido Marlière :
- Oiliam José - "Marlière, o Civilizador"
- João Dornas Filho - Figuras da Província
- Augusto De Saint Hi
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A indústria mais desenvolvida é a do beneficiamento do fumo, que é exportado para os principais centros beneficiadores de Minas e de outros estados. A chegada na Província de Minas Gerais do francês Guido Thomaz Marlipre trouxe grande impulso para a colonização de suas terras. Enviado pela Coroa para pacificar os indígenas, Guido foi responsável pelo surgimento de várias cidades, dentre elas Guidoval. Foi no território onde hoje se encontra essa cidade que o chamado Diretor Geral dos índios e Comandante das Divisões Militares do Rio Doce instalou o seu Quartel General, num lugar chamado serra da Onça. O colonizador morreu em 1836, na sua fazenda Guidoval e daí o nome da cidade - Vale do Guido. O município foi criado em 1948.
Significado do Nome
O nome foi dado ao lugar em homenagem ao coronel Guido Marliére, um de seus desbravadores, e derivou-se de Guidowald, que em alemão significa floresta do Guido.
Um pouco de nossa história
Entende-se como Médio Rio Doce a área do Estado de Minas Gerais que vai da foz do Rio Piracicaba à foz do Rio Manhuaçu ou da cidade de Ipatinga à de Aimorés, formando um ângulo de 90 graus em Governador Valadares. Imemorialmente habitada pelos índios Borum (Botocudos, hoje Krenak) a região foi colonizada já neste século. A memória do desmatamento, da matança dos índios, da mineração, da implantação do latifúndio e da violência armada contra os pobres está muito viva. Por todos os lados é possível encontrar testemunhas oculares dos fatos ocorridos.
Para uma área próxima à cidade de Resplendor, voltam, agora, de exílios diversos, os remanescentes dos Borum, exprimindo contra todas as possibilidades, o que Pierre Clastres definia como traço constitutivo das sociedades que recusam o Estado: sua vontade deliberada de permanecer Nós indiviso¹.
Já por 30 anos acontece, nesta região, depopulação e há migrações desordenadas para qualquer lugar, sendo, ultimamente, para Rondônia e para os Estados Unidos. Jagunços e coronéis constituem referência de autoridade até hoje e a prática policial pauta-se, ainda, pelo princípio de que "pau só não conserta garrafa".
Mesmo acautelado pela assertiva de Paul Veyne, de que "não se pode fotografar a sociedade como se faz com uma paisagem"², ouso tentar fazer um elementar inventário de acontecimentos que, tendo lugar no Médio Rio Doce, ao longo de quase um século e meio, tiveram a alinhavá-los o propósito de colonização. Ciente da completa ausência de sistematizações históricas destes acontecimentos e não dispondo das condições de acesso e consulta aos possíveis documentos, remeti-me à literatura, pouca e rara, romanceada ou de autobiografia, considerando-a fonte para pesquisa histórica, animado pela obra do historiador Bronislaw Gemerek que, em seu recente livro "Os Filhos de Caim", mostra ser possível tomar a literatura como história social.
Assumo o risco, apontado por M. Foucault em seus ensaios de história de cair no que ele defina como ideologia: "estilo nobre e vago, próprio a se idealizar as práticas sob pretexto de descrevê-las"³. Faço-o, no entanto, pela percepção de que no vazio entre os fatos percebidos, há outros fatos que nosso saber nem imagina. No caso, o contorno que seria dissimulado por uma história periodizada e apenas factual é o da conformação e teste de um modelo que presumo estar sendo aplicado nas frentes de colonização que se abriram no país após os experimentos do Rio Doce.
Ainda é M. Foucault que nos vem alertar que a consciência não tem como função fazer-nos apreender o mundo, mas permitir que nos dirijamos neste mundo. Uma pena que o Arnaldo Jabor venha nos remeter à crueza do cotidiano da modernidade em que segundo ele, "a consciência do problema não traz problemas de consciência" (Folha de S. Paulo 06/06/95).
É lugar comum nos relatos dos viajantes do século passado a referência ao Rio Doce como região "infestada" por botocudos antropófagos que faziam audaciosos ataques a qualquer incursão de estranhos. Falam da viabilidade da navegação no Rio Doce para pequenos vapores e de uma companhia inglesa que se propunha a explorar o trajeto entre o litoral e Minas Gerais. Kidder4 constata a variedade de peixes e Saint-Hilaire5 descreve a espessa floresta, compacta a ponto de impedir a ação do sol, e as febres, o impaludismo, ameaçadores em qualquer época do ano. A tal informação acerca da antropofagia dos nativos do lugar é reproduzida dos documentos oficiais do Império, mas não comprovada pelos viajantes e estudiosos. É de se lembrar que a informação foi propagada no bojo de uma campanha oficial para manter o Rio Doce como "área proibida".
Durante o século XVIII, severas leis proibiam as incursões e a mineração nas terras do Rio Doce. Através destas leis, a Coroa Portuguesa fez da região uma reserva estratégica de terras, madeiras nobres e, presumivelmente, minerais. Servia também de cinturão de proteção das zonas de exploração do ouro, em Minas, impedindo o tráfico para o litoral do Espírito Santo6. Tal reserva foi efetivada após a falência das Capitanias que visavam sua exploração: do Espírito Santo, de Ilhéus e de Porto Seguro7. Caio Prado Júnior, em seu livro "Formação do Brasil Contemporâneo" sugere que esta reserva serviu de refúgio para inúmeras tribos indígenas do litoral, que não aceitaram se submeter ao domínio dos colonizadores.
Em 1808, com a chegada da Corte Portuguesa ao Rio, fugindo das tropas de Napoleão, Dom João VI elabora três decretos que incentivaram e legitimaram quaisquer ataques aos povos indígenas do Rio Doce, genericamente denominados "botocudos" nos documentos oficiais. O fato é que Dom João VI chegava com alguns milhares de pessoas e as terras da Coroa mais próximas do Rio de Janeiro eram as do Rio Doce. Os decretos orientavam para a militarização da área, a captura e a escravização de indígenas, a implantação de aldeamentos para catequese religiosa dos que não oferecessem resistência e a doação de sesmarias nas terras conquistadas. Listaram, ainda, justificativas para ações violentas contra os indígenas8.
Do lado de Minas Gerais, os quartéis eram construções simples, próximos às cachoeiras dos rios e chegaram a quase 30; no Espírito Santo, quase 40 e no sul da Bahia, 6. Por atrair índios famintos e doentes, e colonos amedrontados, servirem de entreposto de mercadorias e, às vezes, oferecerem serviços religiosos, muitos destes quartéis e presídios transformaram-se, pouco a pouco, em vilas e cidades. Muitos colonos, e mesmo militares, eram criminosos de outras partes do país enviados para cumprir suas penas como civilizadores da região9. No entanto, a abertura do Rio Doce se dá durante a crise da mineração do ouro no centro de Minas Gerais e muitos aventureiros buscam no Vale pedras preciosas e ouro de aluvião. Havia muitas lendas acerca da abundância de tais riquezas no Rio Doce, até então desconhecido.
Relatórios de inspeções das Divisões Militares de Minas Gerais indicam que, durante todo o século passado, a deserção de soldados e o abandono das terras recebidas pelos colonos eram em alto número no Vale do Rio Doce. Saint-Hilaire considerou tais terras uma isca oferecida pelo governo para que massas humanas abandonassem os centos urbanos. Lamentou a destruição das matas e a barbárie da ausência de leis, como conseqüências mais imediatas deste processo.
O fato é que, com todo o empreendimento do Estado, o século XX chegou sem que nenhuma povoação significativa de colonos tivesse se estabelecido no Médio Rio Doce. Os povoados de Santo Antônio da Figueira (hoje Governador Valadares) e da Natividade (hoje Aimorés) reuniam 30 ou 40 casas. Pocrane, fundada em 1870, só em 1930 alcançou as 60 casas10.
É de fato neste século que a colonização aconteceu. No século passado foram criadas algumas condições, foram feitos ensaios. É inevitável, ao saber dos novos projetos de colonização do Norte do Brasil, relacioná-los com os dados da colonização do Vale do Rio Doce. É possível reconhecer absoluta similaridade de situações, propósitos e até de atores sociais, entre o Calha Norte, de agora, e o "Calha Leste de Minas", de tempos idos: Florestas - índios - quartéis - estradas - madeira e garimpo - pecuária - crise - parecem compor um cenário revisitado.
Após a formação, por decreto real, da Junta Militar de Civilização, Colonização e Comércio do Rio Doce, em 1808, a única voz dissonante, no massacre dos índios da região, foi a de Guido Marliére. Aventureiro monarquista francês, teve problemas com as autoridades brasileiras logo que chegou, em 1811, mas logo foi ganhando reconhecimento por sua disciplina e seus princípios de defesa da civilização contra a brutalidade dos militares e funcionários do governo, na cabeceira do Rio Doce11.
Marliére tornou-se responsável pela catequese dos índios no Vale do Rio Doce. Era catequese civil, de integração dos índios na sociedade nacional, sem serem destroçados. Em caso de catequese religiosa, como ordenava o decreto real, solicitava padres estrangeiros, pois, segundo ele, os padres mineiros tinham aversão aos índios. Recebeu em seu período muitos visitantes e pesquisadores estrangeiros, que deixaram os registros mais antigos sobre os índios e o processo de colonização. Suas anotações acerca dos aldeamentos indígenas, sempre anexos aos quartéis, indicam que eles eram habitados por 300 a 1000 pessoas, cada um.
Os visitantes do século passado denunciavam na Europa os maus-tratos afligidos aos indígenas e tanto o príncipe Maximiliano de Newied quanto Saint-Hilaire coincidem na denúncia da guerra bacteriológica de então: os colonos doavam aos índios roupas com vírus da varíola. Também denunciavam a embriaguez e a fragilidade dos índios frente a tudo isso. Em uma carta a Saint-Hilaire, Marliére agradece a defesa que ele fazia dos índios e, em outra, escreve que em treze anos de reclamos a sucessivos governos, só recebeu evasivas e que nenhum matador de índios tinha sido punido; não se castigava a opressão e nenhum palmo de terra tinha sido restituído aos índios.
Marliére morreu no interior de Minas, em 1836, mas em 1829 já havia abandonado seus compromissos com o governo. Por mais polêmica que tenha sido sua atuação, é consenso nos registros históricos, que três anos após seu desligamento do trabalho, não havia mais aldeamentos de índios no Rio Doce. Tinham sido destroçados ou abandonados, com acelerado extermínio dos seus moradores12.
Vitimados por represálias, traições e pestes, os remanescentes dos botocudos, denominados Krenak, foram agrupados em 1911 pelo SPI - Serviço de Proteção ao Índio, numa área a 16 km da atual cidade de Resplendor, rio acima. Posteriormente, também os remanescentes do Espírito Santo foram enviados para a mesma área. Tudo leva a crer, no entanto, que a maioria dos sobreviventes se dispersou, pois são comuns os relatos dos colonos mais antigos acerca dos índios sem rumo e em bandos, que estavam por todas as estradas do Vale, até 1940. O SPI demarcou, nesta época, a área Krenak, com quase quatro mil hectares de terras servidas por rios e córregos, com muita fertilidade. A urbanização da região e o surgimento do latifúndio fizeram com que políticos e fazendeiros vissem como absurda a presença de índios ali. Além disso, o SPI construiu um reformatório-prisão para índios, de diversos lugares do país, acusados de crimes. O reformatório foi erguido dentro da aldeia e homens Krenak foram agrupados em uma guarnição da Polícia para repressão de outros índios. A convivência forçada com diversas línguas e culturas e a morte de quase todos os homens dissolveu ainda mais os laços de coletividade13. O que fica por entender é o quanto os métodos de Marliére assemelham-se aos da proposta do Mal. Cândido Mariano Rondon, um século depois: ambos têm origem militar, fazem campanhas civilistas junto aos índios e opõem-se à conquista a ferro e fogo das terras ocupadas pelos índios. No entanto, os resultados não são menos decepcionantes. Talvez o argumento economicista já tivesse alcançado a supremacia que a tudo justifica. Também permanece, hoje, o mito de que nas terras indígenas estão escondidos infindáveis tesouros. Tais tesouros motivaram a colonização, da forma como foi feita, no Vale do Rio Doce. No Censo Industrial de 1985, no entanto, a mesma região aparece em último lugar, contribuindo com apenas 0,01% da produção mineral do Estado de Minas Gerais14. É certo que há uma intensa rede de garimpos clandestinos, de pedras semipreciosas, que não aparece no Censo. Mas, os garimpos estão por todo o Estado.
A partir de 1904, no Médio Rio Doce, desenvolveram-se vários povoados, acompanhando os trilhos da Estrada de Ferro Vitória-a-Minas. A construção da estrada enfrentou resistência dos índios Krenak, que já tinham sido enfraquecidos pela guerra declarada e efetivada no século anterior. Acerca disso há relatos do engenheiro Ceciliano Abel de Almeida no Museu da Cia. Vale do Rio Doce e na Fundação que leva o nome dele. No entanto, a maior barreira para a estrada foram as febres e a malária. Era comum se dizer que "cada dormente da estrada correspondia a uma sepultura dos que a construíram".
No livro "Um advogado aí pelos sertões"15, o autor, Waldemar Pequeno, conta que a situação chegou a tal ponto que o colonos que vinham para o Rio Doce, tendo oportunidade de obter terras, não aceitavam trabalho na estrada, nem por bom salário. Conta, ainda, que foi necessário aliciar nordestinos, fustigados pela seca, para que as obras prosseguissem.
Até o período da 2ª Guerra não havia, nos povoados e cidades do Médio Rio Doce, tratamento de água e de esgotos. A maioria da população sequer usava filtros. Era comum tirar água do Rio Doce ou de seus afluentes e deixá-la em repouso de um dia para outro, quando, então, se apresentava clara, pura e boa para beber16.
Uma cultura política de intolerância e mandonismo prevaleceu por todo o período de colonização e deixou seqüelas na organização social e nas disposições pessoais. Na quase totalidade, os municípios só foram emancipados a partir de 1930. Apenas Aimorés emancipou-se antes, para assegurar as divisas, contestadas pelo Espírito Santo. Portanto, os primeiros mandatos dos prefeitos não passaram pelo crivo das eleições. Eram interventores indicados pelo Governador de Minas, por sua vez, indicado por Getúlio Vargas. Assim, além de toda a tradição de desmandos durante a colonização, os novos municípios tomam forma em meio a uma ditadura.
Nas décadas de 30 e 40, a madeira-de-lei do Rio Doce torna-se conhecida em todo o mundo. Peroba, Jequitibá, Sucupira, Braúna, Ipê, Cerejeira e outras espécies lotam as serrarias, que proliferam em todos os cantos e constituem a base econômica das cidades nascentes. A mica, como isolante essencial, antes da invenção do sintético, foi muito explorada na época da 2ª Guerra, empregando significativos contingentes femininos na sua na sua classificação e seleção.
O coronelismo, legitimado por Artur Bernardes, se enraiza neste berço político sem eleição17. Em toda a região, alguns coronéis e capitães mantiveram, e até hoje têm, seu filão de controle político e econômico. Em Governador Valadares, por exemplo, o capitão Pedro e o coronel Altino Machado se tornaram figuras quase lendárias.
Após a extração da madeira e da mica acirrou-se a disputa pelas terras. Neste contexto, os antigos colonos que tinham a posse, mas não o título da propriedade das terras, ficaram extremamente vulneráveis diante da força e das informações privilegiadas dos coronéis e dos grileiros protegidos pelos coronéis. Grileiros e coronéis redirecionaram o desenvolvimento da região, assim, para o latifúndio, necessário à pecuária extensiva. Em momento algum a agricultura, que muitos pensaram ser a vocação primeira do Vale, chegou a ser predominante. As pastagens logo tomaram conta mesmo das margens do Rio Doce. Uma das poucas áreas onde prevaleceu a pequena propriedade foi no Córrego Santo Antônio, em Itueta, no qual se estabeleceram famílias de origem alemã.
Algumas expressões populares denotam os rumos da política na região: "política é porrete", ou "pancada quebra osso, mas não quebra opinião". Por mais que os partidos alterassem seus nomes no nível nacional, no Médio Rio Doce continuavam mantendo nomes estranhos como "corta goela", "catetu" ou "capivara". A ação policial ensinava que "pau só não conserta garrafa" e que "em boca fechada não entram moscas".
A intimidação, fantasiada de prudência, apontava o Rio Doce como cemitério de presos indesejados, que lá eram lançados com pedras amarradas no pescoço ou nos pés. Qualquer contrariedade feita a um coronel era tomada como "coçar a barba da morte" e nos ajustes de contas dos coronéis era comum se dizer do adversário assassinado em tocaia, que "morreu de raiva no caminho"18.
A intolerância era aplicada a tudo o que era popular. Enquanto nunca se firmou um claro predomínio católico na região, pois protestantes e católicos chegaram juntos e ainda cediam espaço aos kardecismo e à maçonaria, era clara a indisposição e a perseguição ao pemba, uma mistura de rituais cristãos, africanos e indígenas: a umbanda regional. Era comum que as forças policiais se divertissem atacando os terreiros e centros de pemba. Dizia-se então que "pancada em espírito não dói".
Firmava-se, ainda, como regra, a violência do crime de mando, aplicado, então, nos conflitos de terra. Comumente, os jagunços estavam em postos importantes da polícia. O livro "Nas terras do rio sem dono" relata que, popularmente, se explicava que tal crime estava relacionado a três barras: barra de córrego, barra de saia e barra de ouro, ou seja, à terra, à mulher e ao dinheiro19.
Junto às alterações sociais o meio ambiente foi alterado em três ou quatro décadas. A floresta desaparecera e as madeireiras já se transferiam para o Baixo Rio Doce, no Espírito Santo. Para trás ficou a erosão do solo e o assoreamento do Rio Doce. A cada ano continua diminuindo a lâmina d'água do rio, que ainda recebe, em toda sua extensão, os esgotos brutos de mais de 200 cidades.
Quando todas as evidências eram de que a região continuaria seu crescimento populacional e econômico, o processo passou a evidenciar seu esgotamento precoce. As mesmas vias que serviram para a chegada de tanta gente se tornaram vias de abandono. Os dados disponíveis não são exatamente da área que denomina-se Médio Rio Doce. Os dados, no entanto, demonstram o fenômeno em cada ponto da microrregião.
Tal área do leste mineiro chegou à década de 60, com 1.700 mil e setecentos habitantes, ou 17,5% da população do Estado. Alcançou, no Censo de 91, 1.550 mil habitantes, ou 9,8% da população de Minas Gerais. Mesmo com taxa de natalidade maior do que o restante do Estado, a população decresceu porque abandonaram a microrregião Rio Doce 683 mil pessoas na década de 60 e 584 mil na década de 70, em busca de emprego, terra ou de salário decente20. Com exceção de Governador Valadares, o restante do Médio Rio Doce continua, ao contrário do Estado e do País, majoritariamente rural.
Para conferir e ampliar tais informações, além da pesquisa nos Arquivos Públicos de Minas Gerais e do Espirito Santo, seria importante ter acesso aos registros das Dioceses de Governador Valadares e de Colatina, das Igrejas Presbiterianas de Governador Valadares e de Resplendor, da Prefeitura de Aimorés e da Companhia Vale do Rio Doce em Vitória e no Rio de Janeiro. Poderiam ser fontes documentais o jornal Estado de Minas e os registros e anotações dos mascates árabes que abasteciam os povoados e eram presença inevitável em cada nova estrada ou atalho. O acesso a uma boa tradução dos escritos de Martius e Manizer também poderia revelar dados importantes. Caso existam, os registros do SPI e das Divisões Militares, instaladas no Vale do Rio Doce durante a colonização, podem conter informações essenciais.
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